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Depois de um artigo teórico, e outro prático, resolvi dar uma mudada no estilo, com uma entrevista com um usuário (e desenvolvedor) que precisa de uma atenção na área de acessibilidade.
O MAQ (Marco Antonio de Queiroz) é desenvolvedor e consultor de acessibilidade, vive dando suas dicas na lista de acessibilidade, no acesso digital e no site dele, o Bengala Legal. Perguntei se ele gostaria de fazer uma entrevista, ele topou, e o resultado está logo abaixo.
OBS: (R) = Rochester ; (MAQ) = MAQ .. hehe
1-(R) Conte um pouco sobre a sua história, como você ficou cego, quais foram as barreiras sociais enfrentadas por sua deficiência, ou quais são as barreiras hoje em dia em tarefas do cotidiano.
(MAQ) Fiquei cego aos 21 anos, sábado de carnaval de 1978, estando, portanto, com 50 anos hoje. Era sexta-feira a noite, a cidade era só carnaval e cheguei em casa na madrugada da virada de sexta para sábado, encostei o carro na garagem e dormi. Acordei cego por Retinopatia diabética.
Tentei resolver a perda da visão com uma tecnologia que, na época, era o máximo para questões da diabetes e retina indo para Barcelona, Espanha. A tecnologia era a do raio laser e, em dois meses e meio de tratamento recuperei 90% da visão, pedindo meu acompanhante que voltasse para o Brasil que eu iria esperar aquele fim de tratamento para que pudesse dar uma volta pela Europa, mesmo que em condições financeiras adversas. Ou seja, eu já estava duro de grana. O meu acompanhante voltou e eu, após uma semana perdi a visão novamente dormindo, dessa vez definitivamente. Estava sozinho em Barcelona, com alguns amigos e namorada que arrumei por lá. As últimas imagens que tenho em minha cabeça, em memória, são da cidade de Barcelona. Voltei para o Brasil cego.
Meus primeiros problemas foram comigo mesmo. Aceitação. Perder a visão com 21 anos e mesmo aos 30, 40, 50, 100 anos não é lá muito fácil. A maior parte dos amigos não sabem o que fazer contigo e somem. Você mesmo não sabe o que fazer contigo e não pode sumir. Para começar eu tinha vergonha de ter ficado cego. Garotão do Leblon, zona sul carioca, que tinha carro na porta, independência e tudo mais, de repente cego não é fácil encarar. Minha personalidade não me deu opção, encarei.
Comecei a aprender a utilizar a bengala para me locomover para os lugares, apesar de todos os coitadinhos que ouvia ao passar. Se você está de bom humor, tudo bem. Mas se sai em um dia que brigou com a namorada fica difícil! Todas as conquistas que lutei por conseguir em minha vida pós cegueira se deveram à aceitação que tive da mesma. Sou cego e não tenho mais motivos para ter vergonha disso. Fiz faculdade, trabalhei 23 anos no SERPRO como programador de computadores, casei, sou pai de um garotão que amo pra ca aramba. E, tudo isso, depois de passar por mais dois transplantes: um de rim e outro de pâncreas. O detalhe é que o de rim foi doado por uma amiga de trabalho em um gesto de generosidade que, só pelo exemplo, me fez crescer e muito. A família que me doou o pâncreas de um familiar falecido também foi maravilhosa. E estou aqui te respondendo tudo isso, Rochester!
2-(R) Eu sei que você é desenvolvedor web há algum tempo, mas como e quando começou essa história toda? O Bengala Legal foi seu primeiro projeto?
(MAQ) Sim, o site Bengala Legal foi, e ainda é, minha menina dos olhos
(risos). Certo dia um estagiário do SERPRO chegou para mim e perguntou se eu tinha uma página na web. Isso foi em dezembro de 1999. Eu disse que não e ele me disse que se ele fosse cego, transplantado e que se tivesse escrito um livro como eu, ele já teria 3 sites e não somente um. (livro: Sopro no Corpo, Víve-se de Sonhos, RiMa Editora).
Assim, ele me perguntou que nome eu queria para meu site, pois ele iria fazer um para mim de presente.
Ele fez a página principal com um link para envio de e-mails e um link para um texto sobre meu transplante que eu tinha escrito. Bem, isso foi no final de seu estágio e ele sumiu!
Dessa forma, comecei a pegar códigos html de outros sites da internet e fazer testes em meu site para ver no que dava. Inaugurei a Bengala Legal em 2/02/2000. Foi o segundo site brasileiro feito e mantido por uma pessoa cega e o terceiro em idioma português. Os outros dois sites feitos por colegas com deficiência visual também foram inspiradores. Um deles é o www.lerparaver.com que é um site de referência em idioma português sobre questões de/para pessoas com nossa deficiência. Por causa da Bengala Legal acabei, forçosamente, aprendendo acessibilidade web.
3-(R) Você disse um outro dia na Lista que o seu conhecimento é todo (ou quase todo) na base do auto aprendizado. Como foi o processo de busca das informações por conta própria? Quando você começou o estudo os sites eram acessíveis o suficiente? Quais foram as principais barreiras?
(MAQ) Acabei, sem querer, respondendo essa acima. Bem, meu início foi copiando e colando códigos de outros para ver no que dava em meu site. Assim aprendi a fazer um link, link de envio de e-mails, tabelas de dados e tabelas para layoutar a página (risos), formulários, a entender como se fazia as cores em hexadecimal, a entender de metatags, a fazer tudo que fosse acessível para o meu leitor de tela e, ao mesmo tempo, que a página não ficasse feia e sem graça para quem enxergasse. Meu objeitivo não era fazer uma página para cegos, mas para o mundo. No final de 2001, quando descobri o WCAG 1.0 foi a festa. Cheguei a me emocionar em perceber que os próprios sujeitos que desenvolviam os padrões web já sabiam de acessibilidade e se importavam com isso, eu não estava só!
Comecei a estudar o WCAG e suas técnicas de html e CSS. Ao mesmo tempo me deparei com uma lista de pessoas com as mais diversas deficiências no Yahoo, onde fiquei de final de 2000 a 2004 , onde inúmeras pessoas com outras deficiências e que precisavam de acessibilidade web me perguntavam e eu procurava saber, como fazer acessibilidade para elas e suas tecnologias assistivas. O surdo sempre foi uma de minhas maiores preocupações, simplesmente porque eu não sabia, e ainda sei pouco, fazer acessibilidade web para eles. Como colocar legendas em vídeos? Como praticar a língua de sinais nos sites? Isso aos poucos vai sendo resolvido, mas ainda é das minhas maiores preocupações. Quanto a nós cegos, nossos leitores de tela estão cada vez mais sofisticados, embora a web também o esteja, deixando-nos fora do baile inúmeras vezes. Existem poucos sites acessíveis no Brasil e no mundo, caso sejamos capazes de distinguir acessível de acessável.
4-(R) Um assunto amplamente abordado é o da acessibilidade em serviços do governo, e em serviços triviais, como uso de caixas eletrônicos ou mesmo compras em supermercados. As medidas tomadas nos últimos tempos são suficientes para a acessibilidade desses serviços? O que você acha que poderia melhorar?
(MAQ) Nossa, daqui há pouco estaremos em assuntos polêmicos! Existe, no Brasil, digo em nosso país porque você me encontrou em uma lista de discussão portuguesa, leis e decretos que tentam garantir acessibilidade nos vários níveis de sua aplicação, assim como para as várias deficiências.
Seria questão de fiscalização? De consciência de cidadania das pessoas com deficiência? O que será que faz as leis existirem e não serem empregadas em seu conteúdo? O decreto federal 5296, se fosse empregado, seríamos o país com maior acessibilidade do mundo! Mas não adianta leis se não há respeito pelas leis, não adianta leis se não existe consciência delas, não adianta leis se a população ainda não se aculturou de suas práticas. Existem iniciativas pontuais, aqui e ali, de alguns bancos com sites acessíveis, alguns que dizem que seu site é acessível sem o ser, caixas eletrônicos lançados e que poucas pessoas com deficiência os conhecem, mesmo porque, como nunca praticaram o uso dos caixas eletrônicos, ou pouco se utilizaram disso, ainda não incluíram em seu cotidiano, etc. Livros acessíveis, peças de teatro acessíveis, filmes acessíveis, web acessível é tudo uma luta cujo resultado não é para mim, mas para as pessoas com deficiência de daqui há, pelo menos, duas gerações. Para se ter uma idéia, se para as pessoas sem deficiência é um grande facilitador não ter de sair de casa para pagar contas em banco e fazê-lo pela web em seus homebanks, comprar um livro, CD, aparelhos domésticos e coisas do gênero pela web, para nós, pessoas com deficiência que temos mais dificuldade na locomoção, fazê-lo em casa seria o máximo! No entanto, minha conta bancária, de minha aposentadoria, é de um banco que não tenho acesso, nem com o mais moderno de meus leitores de tela, e o banco administra minha conta sem que eu saiba de nada porque, apesar de eu pagar todas as taxas que qualquer cidadão paga para fazer qualquer serviço, ele não deixa eu entrar por segurança. (risos). Sabe, um dia ainda assalto um banco via web!
5-(R) Há um grupo de pessoas que acham que as recomendações da WCAG não conseguem melhorar de fato alguns pontos da acessibilidade. O que você conhece do WCAG samurai? Você acha que as guidelines deles estão mais perto da realidade do que a da WCAG?
(MAQ) Não conheço a WCAG Samurai pelo simples fato que ainda não existe tradução da mesma. Se eu somar todo o meu inglês técnico é capaz de não conseguir completar um parágrafo. De qualquer forma, a WCAG Samurai é um confronto com o WCAG 2.0 que ainda não conheço pelo mesmo motivo. Agora, se alguém questionar o WCAG 1.0, apesar de sua idade avançada, manda falar comigo! Ainda não conheço nada, nem ao menos diretrizes internacionais que se baseiam na WCAG 1.0, que cheguem a ser melhores que ela. As melhores que conheço são as diretrizes irlandesas de acessibilidade. Portanto, nessa luta Samurai X WCAG 2.0 estou ainda fora por questões que os dois não me são acessíveis! (risos). No entanto, acho difícil superarem o WCAG 1.0. [(R) nota: Vou tentar entrar em contato com eles e ver a possibilidade de tradução para português, nem que seja feita por mim mesmo! :D]
6-(R) O Flash é um assunto amplamente abordado nessa questão. Há algumas recomendações para melhorar a acessibilidade nele, mas poucos as seguem. Você consegue acessar sites em flash pelo ledor de tela?
(MAQ) A maioria dos sites com flash são inteiramente inacessíveis. Quando conseguimos algo é somente entrar nos botões que chamam de links. O Flash é imagem e, como tal, dificílima de ser navegada. No entanto, não só para nós, pessoas com deficiência que se utilizam de leitores de tela, que o flash tem pouca acessibilidade. Para qualquer um carregar uma página totalmente em flash é difícil, se a pessoa carregar com uma conecção lenta, em geral, desiste. Em alguns flash os leitores de tela navegam como se estivessem nadando em uma piscina com a respiração presa e sempre debaixo dágua. Claro que se estivesse fora da piscina, em sua borda, poderia até correr! O pior é quando ficamos nessa natação sacrificante para não chegarmos a lugar algum.
O mais engraçado dessa história é que os robots não conseguem ler o flash. Assim, o maior cego do planeta, o Google, não consegue indexar seu conteúdo. As pessoas fazem páginas lindas para não serem visitadas! O Google acessa justamente tudo que um leitor de telas consegue acessar. Quando fazemos pesquisa por imagem só acessamos essas imagens quando possuem o atributo ALT, ou seja, TEXTO. Sendo assim, babau Flashs!
7-(R) É comum a relação entre usabilidade e acessibilidade (em vista que se o usuário não tem acesso a uma informação essa tem baixa usabilidade para ele). Quais são as diferenças que você vê na forma como o uso e a usabilidade são tratados quando não se tem o mouse e o monitor?
(MAQ) usabilidade é uma ciência bastante específica, enquanto a acessibilidade é bastante universal. Quando eu chego em uma página e ela está acessível para o meu leitor de tela, quando posso ler toda a página com ele e executar todas as suas tarefas essa página está acessível para o MEU LEITOR de TELA. Se eu passo essa página por avaliadores de acessibilidade automáticos, avaliadores de código automáticos, avaliadores de CSS automáticos, quando testo essa página em mais de um navegador, se ela tem acesso por dispositivos móveis como os celulares e etc, quando passo essa página por corretores artográficos, quando faço testes para dautônicos para verificar se os contrastes estão bons, e tenho certeza que está tudo ok, posso dizer que essa página está dentro das normas universais de acessibilidade. No entanto, ela pode ser zero em usabilidade. Por exemplo: se tenho uma estrutura como template, em que os menus estão à esquerda e o conteúdo principal à direita e a usabilidade desses menus estão em conformidade para um acesso feito de forma simples e intuitiva, rápida e objetiva à informação desejada, ela tem uma boa usabilidade para quem usa mouse. No entanto, essa mesma estrutura, se não tiver um salto direto para o conteúdo eu vou ter de precionar tantas vezes a tecla TAB quantos forem os menus à esquerda, até ao conteudo que eu estava procurando, pois minha navegação é feita inteiramente via teclado, pois não utilizo o mouse, naturalmente. (sou péssimo de mira!). No entanto, alguns paralisados cerebrais, tetraplégicos, algumas pessoas com alguma síndrome que diminuam sua coordenação motora nas mãos, podem também só conseguir chegar ao lado direito da página atravessando todo o lado esquerdo com o mesmo teclar de TABs. Dessa forma, se essas pessoas, apesar de estarem vendo o formulário de cadastro bem a sua frente, podem ter de passar por 40 menus dando TAB para poder preencher o danado. O cara já tem uma coordenação motora ruim, nego vai acabar preparando uma tendinite para eles, de tanto fazer esforço repetitivo! Abaixo à tendinite! Tenho um amigo que tecla com os dedos dos pés, já imaginaram? Ou seja, a usabilidade pode estar ótima para quem não navega via teclado, mas péssima para quem só tem essa alternativa. Por isso, viva as âncoras e os accesskey! Eles são responsáveis por uma usabilidade adequada para pessoas que navegam via teclado, pois otimizam essa navegação.
8-(R) Vi no seu site que você escreveu um livro: Sopro no corpo: Vive-se de sonhos. Conte-nos como foi a experiência de escrever, e mais ainda, de rever e lançar uma nova edição 20 anos depois.
(MAQ) Vou lançar um novo livro agora, seu título será A entrevista que fiz para o Rochester, será bastante completo! (risos). [(R) nota: depois que mandei as perguntas que vi quão amplas estavam. Com esse conteúdo todo dava pra fazer uma bíblia de acessibilidade - por São MAQ :D]
Escrevi o Livro Sopro no Corpo em 1985 e foi lançado pela Editora Rocco um ano depois. Chegou a tirar o terceiro lugar em vendas aqui no Rio em livros de não ficção. Foi minha autobiografia. Vinte anos se passaram e uma outra editora comprou os direitos editoriais da Rocco e o reeditou em sua sexta edição, pois foram 3 da Rocco, duas do ciclo do livro e agora, em 2005, uma da RiMa Editora. É algo que sinto muito prazer em ter realizado, pois é a minha vida bem aberta, os medos, as frustrações, as lutas, vitórias e derrotas. Apesar de poder ter sido um dramalhão mexicano, minha personalidade não permitiu isso e é um livro em que as pessoas pensam no cego de uma nova forma, a forma de dentro, de como pensamos e algumas coisas que sentimos. Percebem também que não somos tão limitados quanto parece ser a uma pessoa que fecha os olhos por um minuto e tenta ser cego, ser cego é um aprendizado, como fazer todas as atividades da vida diária se utilizando de um novo jeito, as dificuldades e superações, enfim, minha vida é um livro aberto, basta comprar! (risos). Existe on line na Submarino e na Livraria Cultura de São Paulo. Quem procura acha! (risos).
9-(R) Obrigado pela participação! Agora fique a vontade pra fazer seu jabá (risos).
(MAQ) Gente, juro que sou um cara legal, de longe pelo menos! (risos).
Hoje em dia estou trabalhando com um grupo em acessibilidade web, damos cursos de acessibilidade, palestras etc.
Existe um vídeo que acho importante de se assistir e ter, que fizemos com o intúito de sensibilizar as pessoas para a acessibilidade digital, que se chama: Acessibilidade web: Custo ou Benefício? e que está em: http://acessodigital.net/video/video_acesso_digital.wmv. Todo mundo de olho! (risos).
Abraços acessíveis e fáceis de usar do MAQ.
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