FRANCISCO JOSÉ DE LIMA E JOSÉ APARECIDO DA SILVA
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP
Minicurrículo
Francisco J. Lima (M.A.)
"Psicólogo com Licenciatura em Psicologia pela UNESP/Assis
"Mestre em Psicologia (área de Psicofísica Sensorial) pela FFCLRP/USP
"Doutorando em Psicologia (área de Psicofísica Sensorial) pela FFCLRP/USP
"Membro Internacional do TRG (Tactile Research Group)
"Sócio Colaborador da ABEDEV (Associação Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais)
e-mails: limafj@usp.br / limafj@uol.com.br
Universidade de São Paulo
Departamento de Psicologia e Educação
Laboratório de Psicofísica e Percepção Humana, FFCLRP/USP
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Dr. José Aparecido Da Silva "Professor Titular do Departamento de Psicologia e Educacao da FFCLRP-USP
"Diretor da FFCLRP-USP
"Coordenador da Area de Psicologia no CNPq.
e-mail: jadsilva@ffclrp.usp.br
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Departamento de Psicologia e Educação
Avenida Bandeirantes, 3900 Ribeirão Preto/SP Brasil 14040-901 - Tel/FAX: 55-16-6332660
Resumo
O presente artigo trata da necessidade de se pesquisar sobre o sistema táctil. Cita alguns estudos brasileiros e internacionais relevantes sobre o sistema háptico. Aponta vieses científicos na interpretação de dados em algumas pesquisas sobre a produção e reconhecimento de desenhos por cegos congénitos. Sugere algumas questões importantes e necessárias a serem investigadas, para um melhor conhecimento do tacto e da capacidade háptica de sujeitos com limitação visual. Trata, ainda, de algumas questões relativas aos mapas tácteis, seu uso na educação e na orientação e mobilidade dos cegos. Por fim sugere que bastariam, tão somente, o empenho e a união de pesquisadores, educadores e das pessoas com limitação visual, e um maior apoio, inclusive financeiro, de órgãos oficiais e, mesmo, não-governamentais, para que essas pesquisas ocorram, e delas se beneficiem essas pessoas.
Algumas considerações a respeito da necessidade de se pesquisar o sistema táctil e de se ensinar desenhos e mapas tácteis às crianças cegas ou com limitação parcial da visão
Recente pesquisa na literatura especializada, tanto em revistas e teses, como em sistema electrónico de divulgação científica, vem confirmar o que tem ocorrido já há muito tempo no Brasil: raras são as publicações de estudos científicos a respeito do tacto, sua implicação na educação, na orientação e mobilidade ou na vida social dos portadores de limitação visual, em geral.
Entretanto, em relação aos assuntos concernentes às pessoas portadoras de limitação visual, a falta de pesquisa não reside apenas na área do sistema táctil. Também na saúde não há pesquisas nacionais que nos dêem dados estatísticos oficiais precisos de quantos são os cegos congénitos; quais são as doenças que mais causam cegueira ou perda da acuidade visual em crianças; que doenças ou outras causas provocam a perda da visão do adolescente ou adulto, embora seja fato ululante que no Brasil, crianças nascem cegas ou perdem a visão total ou parcialmente, ainda quando muito novas e, em um número maior, jovens e adultos ficam cegos ou perdem parcialmente a visão por motivos diversos (e.g. acidentes de automóvel, com armas de fogo etc). Doenças como o retinopatia da prematuridade (rop), glaucoma, catarata, diabetes, entre outras, também constituem causas frequentes de cegueira ou de perda parcial da visão de recém-nascidos, jovens, adultos e anciãos. Todavia, no caso da catarata, os oftalmologistas relatam que pessoas poderiam ter sua visão restituída, fossem-lhes dadas condições médicas, hospitalares, financeiras e principalmente de informação sobre a natureza e possível reversibilidade dessa doença.
Contudo, alguns trabalhos não governamentais, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, têm, com esmero, tentado suprir essa lacuna, oferecendo subsídios para que oftalmologistas e educadores possam ter subsídios para seus estudos e programas, visando políticas de saúde e de ensino desses indivíduos.
Algumas patologias, e.g. o diabetes, a hanseníase, podem fazer com que pessoas percam o sentido do taco, parcial ou totalmente, infligindo a essas pessoas sofrimento e dificuldade de fazer até mesmo as tarefas mais corriqueiras, como, por exemplo, ao tomar banho, o sujeito diabético pode não conseguir segurar o sabonete, por falta de sensibilidade táctil, o mesmo ocorrendo ao tentar segurar uma faca ou garfo ao se alimentar.
Sob essas circunstâncias, começamos a dar valor a esse sentido do qual aprendemos a depender desde pequenos e do qual negligenciamos sua natureza, seu conhecimento e sua pesquisa, tal a naturalidade com que o usamos. Excepção à pouca produção científica sobre o sistema háptico sinestésico e proprioceptivo no Brasil, são os estudos de Lima, Heller e Da Silva (1998 a e 1998b), Lima e Da Silva (1998), Zedu, Yano, Souza e Da Silva (1992), Heller, Calcaterra, Green e Lima (1999).
Alhures, inúmeros pesquisadores (e. g. Schiff, W., & Foulke, E., 1982; Loomis & Lederman, 1986; Katz, 1989 e Heller, 1991) têm-se mostrado interessados em decifrar os mistérios que envolvem esse que é um dos mais complexos meios de comunicação entre o mundo interno e externo do homem: O tacto.
Heller (1991) sumariou, com excelência, as principais questões que precisam urgentemente de respostas mais completas e satisfatórias quanto à relação entre o sistema táctil e visual: Nós pensamos sobre o mundo em termos de imagens? A modalidade pela qual obtemos esta informação tem importância? Será que as pessoas cegas imaginam os objectos da mesma forma que o fazemos? Será que entendem o espaço da mesma forma que o resto de nós? As pessoas cegas têm imagens? As imagens dos cegos são como as dos videntes? Quais são as implicações da falta de experiência visual para as imagens? As pessoas cegas percebem objectos e relações espaciais indefinidas de modo deficiente, porque podem faltar-lhes imagens mentais? Qual a natureza de seu imaginário? As imagens mentais são necessárias para alguns tipos de compreensão espacial?
A essas perguntas acrescentamos: Como fazem ou são as representações mentais de pessoas cegas, produzidas a partir de objectos descritos por pessoas não cegas, uma vez que estas, ao descreverem algo, usam de representações próprias de quem está vendo? Como são as representações mentais de "objectos" amorfos (e. g., chuva), feitas pelos cegos? Que processos são usados para a compensação do limite imposto pela falta parcial ou total da visão?
Por outro lado, sabemos que as pessoas portadoras de limitação visual aprenderam a se utilizar do tacto, assim como as pessoas portadoras de visão normal o fazem de sua visão.
Destarte, não basta buscarmos as respostas apenas na introspecção de um vidente (o mundo do cego não é o mundo de um vidente com os olhos fechados ou em um ambiente sem luz, meramente), é mister buscá-las via pesquisa que nos possa dar dados concretos sobre tal assunto, de tal sorte que possamos entender o sistema de percepção táctil mais profundamente e proporcionar aos usuários mais frequentes desse sistema sensório (os indivíduos portadores de limitação visual), subsídios para que estes possam utilizar directa ou indirectamente, seja por meio do próprio conhecimento que tais estudos possam trazer, seja pelo virtual uso dele para o desenvolvimento de tecnologia apropriada às necessidades desses indivíduos. Por exemplo: materiais educacionais como sintetizadores de voz para leitura, kits para confecção de mapas e desenhos tangíveis em geral (Lima e Da Silva, 1998), equipamentos que auxiliem a orientação e mobilidade; instrução formal dos profissionais que lidam com as pessoas portadoras de limitação e destes próprios, no desenvolvimento de estratégias de que possam valer-se para a compreensão e adequação ao mundo das pessoas portadoras de visão normal.
A questão, pois, reside no fato de que sem um maior conhecimento das questões relativas ao tacto, ficamos inermes às condições ou limitações reais ou imaginárias desse sistema sensório complexo e indispensável.
Assim, um conhecimento mais profundo de como se processa a representação mental que os cegos têm ou fazem do mundo visual pode-nos possibilitar oferecer a essas pessoas melhores condições de reabilitação, adaptação e inclusão no mundo das pessoas portadoras de visão normal, uma vez que podemos propiciar aos portadores de limitação visual subsídios para que saibam como melhor usar o tacto, como este funciona, a fim de conhecerem até que ponto podem chegar, superando sua limitação sensória.
O sistema sensório visual nos dá a conhecer o mundo através de uma grande variedade de estímulos, experienciados quase que ao mesmo tempo, propiciando que distingamos uma variedade ainda maior de situações que nos poderiam ser aversivas ou mesmo fatais.
Através da exploração do ambiente pelas mãos, auxiliado por outros órgãos do sentido, principalmente audição e olfacto, as pessoas portadoras de limitação visual vêm conhecendo e/ou reconhecendo o meio ambiente em que vivem e tirando dele as informações necessárias para sua sobrevivência e seu desenvolvimento físico, mental e intelectual.
Uma vez recebidas tais informações, as pessoas portadoras de limitação visual têm de descodificá-las e compreendê-las, a fim de discriminá-las como sendo de perigo, prazer etc., sob pena de, não o fazendo, porem sua vida em risco, mesmo nos atos mais simples do dia-a-dia.
O tacto, que comparativamente à visão, é altamente hábil no reconhecimento de padrões 3D (Lederman e Klatzky, 1987, Lima e Da Silva, 1997, 1998 e Lima, Heller e Da Silva, 1998 a e b), oferece-nos, ainda, informações que a visão encontraria dificuldade ou mesmo se veria impedida de oferecer. Ao olharmos para um objecto, podemos inferir que ele tem esta ou aquela forma. Associando sua cor com o material observado, podemos, mesmo, arriscar predizer sua temperatura. Todavia, quanto a esse particular, é o tacto que nos pode dar as informações mais precisas e fidedignas, da mesma forma que o faz para textura, aspereza, fio etc.
Muito embora pesquisas na área do sistema háptico tenham trazido informações ricas à luz de nosso conhecimento, muito desse conhecimento ainda se restringe aos laboratórios e revistas especializadas. Educadores e pesquisadores às vezes trabalham paralelamente sem que as informações, por eles alcançadas, se cruzem. Os indivíduos que desse conhecimento poderiam estar-se beneficiando mais prontamente são deixados de lado ou só têm contacto com tal conhecimento de modo indirecto e muito mais tarde. Por outro lado, algumas teorias ou visões enviesadas ainda perduram entre psicólogos e educadores no que tange ao conhecimento háptico e à capacidade, ou potencialidade dos indivíduos cegos (Heller, 1991, Lima, neste volume).
Devido a teorias como de Revesz (1950), pontos de vista como de Lederman, Klatzky e Barber (1985), entre outros, muitos pesquisadores e profissionais que lidam com os portadores de limitação visual total acreditam que o sistema háptico não se presta adequadamente ao reconhecimento de padrões bidimensionais, e que desenhos em relevo não podem ser reconhecidos satisfatoriamente pelos sujeitos com limitação visual, mormente pelos cegos congénitos totais. Essas teorias, contudo, não recebem a unanimidade dos pesquisadores (eg. Heller, 1989 e 1991, Millar, 1975; Lima, 1998), principalmente porque aquelas pesquisas trazem procedimentos questionáveis seja na sua aplicação, seja em sua análise.
Muitos estudos sobre a produção de desenhos por pessoas cegas incluíram crianças para aumentar a amostra e faziam uso de lápis para os desenhos. Outros, para verificarem a capacidade dos cegos em reconhecer desenhos pelo tacto, pediam aos sujeitos que nomeassem os desenhos que apalpavam, quando o cego não apontava o nome para o desenho, a conclusão directa era que o tacto não era adequado ao reconhecimento de figuras. Assim, os cegos totais, mormente os cegos congénitos, foram considerados incapazes de reconhecer desenhos com os dedos.
Estes estudos se equivocaram em suas conclusões, pois não levaram devidamente em consideração alguns factores importantes que diferenciam os cegos da pessoa portadora de visão normal, tais como os que mencionam Lima e Da Silva (1998):
" (...) os cegos congénitos nem mesmo são acostumados com o uso da caneta ou do lápis, pois sua escrita se faz pelo código Braille, geralmente com o uso de uma reglete e punção, ou máquina Braille para dactilografia, o que requer movimentos motores fortes, lineares, principalmente horizontais, e/ou de pressão vertical, de cima para baixo. Portanto, os movimentos motores usados com o punção ou mesmo com a máquina Braille são diferentes do movimento mais fino requerido pela caneta. Além do mais, a escrita Braille, feita na reglete, dá-se da direita para a esquerda, e sua leitura, da esquerda para a direita, exigindo que o sujeito escreva de um lado da folha, e vire-a para lê-la no lado inverso.
A uma criança vidente é propiciada, desde muito pequena, a experiência com giz de cera, canetinha etc., para desenhar. Fotos, figuras e desenhos são-lhes apresentados em livros infantis, jornais, revistas, entre outros materiais, que os pais usam para a estimulação dessas crianças, seja lúdica ou educacionalmente. O mesmo não ocorre com as crianças cegas. Primeiro, o desenho ainda é tido como algo inacessível aos cegos. Segundo, os materiais que permitem aos cegos desenhar são raros, caros e, devido a sua natureza física, impróprios às crianças pequenas.
Há muitas variações entre os sujeitos cegos congénitos, assim como há nos videntes e cegos adventícios. Portanto, é perigoso generalizar a partir de quaisquer dados, sem levar em consideração que muitos desses indivíduos têm menor educação formal, foram criados e/ou vivem em ambientes físicos e sociais restritos, diversos ao ambiente dos videntes, com os quais são comparados. (pp. 138-139)
Quanto à crença de que, uma vez os cegos não alcançando um nome correcto para um desenho examinado com o tacto, eles são incapazes de reconhecer padrões bidimensionais, constitui também um equívoco de interpretação. Um indivíduo vidente perante um quadro pode reconhecer nele uma paisagem, porém pode desconhecer o jacarandá ali pintado. Isso não significaria que a visão, embora fosse capaz de reconhecer paisagens, não fosse capaz de reconhecer árvores. Pelo contrário, isso significa que, ou o observador não sabe, ou não se recorda do nome da árvore. Portanto, quando os cegos congénitos, ao examinar hapticamente um desenho, não alcançam uma concordância nominal, isso não implica, necessariamente, que o sistema táctil não seja capaz de reconhecer figuras bidimensionais tangíveis, ou que o cego congênito não esteja apto a entender essas figuras, por não ter experiência visual prévia. Isso apenas sugere que os cegos congénitos, por não estarem acostumados a observar padrões bidimensionais, teriam um menor banco de memória pictográfica que os videntes vendados e os cegos adventícios, os quais detêm um maior registo dessas configurações na memória.
Há uma diferença crucial entre limitação e deficiência (Lima, neste volume), assim como há uma diferença significativa entre potencial e desempenho (Heller, 1991). Em dada tarefa, o sujeito pode não se ter um bom desempenho, contudo, isso não significa que ele não tenha o potencial para desenvolver e desempenhá-la com excelência. O que ocorre com o cego é que não lhe foi propiciada estimulação suficiente e adequada a sua capacidade de produzir desenhos, nem mesmo lhe foi dada a oportunidade de observar uma quantidade de desenhos que lhe permita criar um banco de memória de imagens. Assim, ao se deparar com uma dada configuração, o sujeito cego pode não saber o que ela significa, isto é, oferecer-lhe um nome.
Além do mais, não sabemos com certeza se os desenhos, na forma que são apresentados, reflectem a melhor descrição do tridimensional para o sistema táctil, uma vez que este sistema tem demonstrado modalidades específicas. Lima et alii (1998 a) demonstraram que os cegos são capazes de produzir desenhos em relevo, variando sua produção de acordo com habilidades individuais e complexidade dos padrões representados. Nesse estudo a mediação da visão pareceu ter tido influência no desempenho do sujeitos cegos congénitos, uma vez que seus desenhos foram considerados menos representativos que os produzidos por cegos adventícios e videntes vendados. Contudo, uma explicação alternativa é que os sujeitos cegos não detêm as regras que regem o desenho à mão livre, e a falta de prática com o desenhar ou ver (tocar) desenhos com os dedos.
A mediação da visão, de fato, é usada para explicar, em grande parte, o baixo desempenho que alguns sujeitos cegos têm no reconhecimento de desenhos (Lederman et alii, 1987). Não obstante, Heller (1989), Lima (1998), entre outros, obtiveram resultados que mostram que os sujeitos cegos são capazes de reconhecer figuras bidimensionais em relevo, comparativamente aos videntes.
É fato, pois, que não se sabe com certeza como são as representações mentais feitas por cegos a partir da captura háptica, mas há indícios fortes que nos levam a acreditar que essas representações são diversas das imagens mentais dos videntes, uma vez que estes têm a experiência visual e aqueles jamais enxergaram.
Como não temos dados definitivos quanto à capacidade táctil e os estudos nessa área de investigação científica ainda são incipientes, ainda não sabemos como realmente lidar com tais conhecimentos. Assim, a transcodificação do mundo visual para uma linguagem táctil e/ou oral traz consigo a nomenclatura de quem vê, o que dificulta a compreensão do mundo interno ou da representação mental que o cego faz do mundo. A despeito disso, em geral, oferece-se aos cegos, na forma de verbalização, o mesmo tratamento educacional usado para os videntes.
Vejamos, como exemplo, a seguinte situação: duas crianças, de mesma idade, entram para a escola. Uma delas é cega, a outra é portadora de visão normal. Sabemos que, por questões idiossincráticas, de natureza social, económica, enfim de ambiente e relação, ambas as crianças, ainda que tendo uma mesma idade, têm diferenças particulares marcantes. Entretanto, sabemos que em situação normal, tanto professores como as próprias crianças têm mecanismos para lidarem com essas diversidades. Porém, em nosso exemplo, contamos com mais uma diferença, uma das crianças é cega, i.e., portadora de limitação total da visão. Embora a criança possa já ter desenvolvido seus próprios mecanismos para lidar com sua limitação, talvez seu professor, por questões de formação e informação, ainda não tenha tido a oportunidade de fazê-lo.
Aqui, temos uma típica situação onde o conhecer das limitações de um sujeito pode proporcionar ao profissional uma melhor elaboração ou resolução de eventuais problemas decorrentes desta relação, com consequente superação de tais limites.
De volta ao nosso exemplo, ambas as crianças são igualmente capazes e estão perfeitamente prontas para o início da educação escolar. Seu professor as ensinará do mesmo modo, seus exemplos serão os mesmos dados aos alunos portadores de visão normal. Além da verbalização, não haverá, pois, diferenças na explanação do professor, visando a um indivíduo ou indivíduos em particular na sala de aula, porém a toda esta.
Assim, mesmo que o professor tenha habilitação para educação especial, ele poderá estar presumindo que a representação que formula para explicação de dada informação ao aluno sem limitação visual seja a mesma que deveria dar ao aluno cego. É possível que seu pressuposto seja de que uma vez verbalizando o exemplo dado à sala, isso bastará à compreensão do aluno cego.
Já no primeiro grau, por exemplo, certo professor de Matemática ao ensinar Geometria pode, com esmero, descrever as formas e expor o problema oralmente ao aluno, ou ainda, com a melhor das boas intenções, proporcionar a esse aluno desenhos e gráficos em alto-relevo, crendo que isto baste para sua compreensão. Mas será que basta?
Lederman e Klatzky (1987) mencionam o fato de que geralmente os gráficos tangíveis são réplicas em relevo de seus originais em tinta, sendo presumido que o que serve para a visão deva servir para o tacto. Tal pressuposto, contudo, alertam as autoras, não deve ser aceito sem reserva, uma vez que "mecanismos" de codificação de modalidade específica foram encontrados.
É fato, pois, que as experiências vividas pela criança com limitação visual são muito diversas das das crianças portadoras de visão normal, requerendo daquela criança um maior esforço mental para aprender o mesmo conteúdo que seus colegas, já que, primeiro, tem de decodificar o que lhe está sendo explicado.
Assim, dessa criança é exigido que formule ou lance mão de estratégias diversas, muitas vezes, extremamente complexas para a resolução de um problema que a pessoa portadora de visão normal não precisa ou nem se dá conta de fazer.
Claro, pois, que as crianças portadoras de limitação visual se adaptam invariavelmente muito bem a essas situações, porém isso requer-lhes tempo e grande esforço mental e mesmo físico, uma vez que eles mesmos não conhecem o(s) mecanismo(s) que rege(m) a(s) representação(ões) mental(is) das situações por elas experienciadas.
Daí, mais uma razão e urgência de se conhecer profundamente o sistema sensório táctil (por exemplo a partir de práticas, de pesquisas e não somente pela introspecção de quem vê), para tirar ou minimizar a "carga mental" imposta ou exigida às pessoas portadoras de limitação visual ou cegas.
Posto isso, caberia ressaltar que a pesquisa de tais estratégias permitiria a criação de uma teoria sobre o funcionamento do tacto, não só nas pessoas portadoras de limitação visual como também nos videntes. Com efeito, o descobrimento de tais estratégias desvendaria o funcionamento desse sentido, uma vez que ele é utilizado optimamente pelos cegos, inclusive por aqueles que jamais tiveram a experiência visual (os cegos congénitos totais).
Para tanto, propomos, como mais uma via de pesquisa, e principalmente instrumento de ensino, de lazer e terapêutico, o uso de desenhos na formação de crianças cegas. Isso começando o mais cedo possível: inicialmente, com a apresentação de padrões em relevo, aliado a outras configurações, textura e técnicas correlatas; em seguida, na própria produção de desenho pelo cego, de tal forma que ele possa expressar seus sentimentos e visão de mundo através do desenho, o que lhe propiciaria, ao nosso ver, tanto um aumento do conhecimento do mundo tridimensional, como uma maior aquisição do léxico, além de proporcionar o conhecimento de layouts antes mesmo de a criança percorrê-lo fisicamente (eg. a escola que vai estudar, a nova casa para onde mudou etc). Os benefícios são óbvios, então.
Quanto ao uso do desenhos em situação terapêutica, contudo, " é importante notar que, antes de que se venha a fazer qualquer interpretação clínica de um desenho produzido por um indivíduo cego, é mister que: 1) se desenvolva, onde for necessária, uma linguagem própria para a representação pictórica tangível; 2) que essa linguagem seja ensinada às crianças portadoras de limitação visual; 3) que o desenho faça parte do cotidiano da criança cega, como o faz da criança vidente; 4) que se faça pesquisa, visando à padronização da produção desses desenhos para uso clínico. Antes de se tomarem esses cuidados, constituiria falta de bom senso, insensatez e mesmo de ética fazer a menor interpretação que seja da produção pictórica do cego." (Lima et alii, 1998 a, p. 140)
A utilização do desenho como uma via de compreensão do tacto e do mundo de representações mentais dos cegos, não é a única e nem dará todas as respostas, porém contribuirá para ampliarmos nosso conhecimento sobre o sistema háptico, a fim de que possamos propiciar melhores condições de vida e de reabilitação às pessoas portadoras de limitação visual congénita ou adventícia.
O uso do desenho e do desenhar como forma de lazer ou expressão artística propiciará, ainda, o vencer limites sociais e quiçá fazer com que cegos e videntes vejam o mundo mais semelhantemente, compartilhando de idéias, imagens e representações de si, do outro e do mundo que os cerca e os mantém em sociedade. Porém, talvez sejam nas áreas de estudos da geometria, geografia e de orientação e mobilidade que mais se poderá aplicar o treino e o uso do desenho bidimensional em relevo por pessoas cegas. Isto porque o reconhecimento háptico de configurações bidimensionais poderá ajudar na solução de alguns dos problemas de orientação e mobilidade encontrados por indivíduos com limitação visual, parcial ou total, por exemplo os mencionados por Marston e Golledge (1997).
Segundo esses autores, a falta de visão dificulta prever pistas para perceber e corrigir padrões espaciais; acessar conhecimento espacial para localizar atalhos; bem como dificulta o acesso ao conhecimento espacial para integrar uma via conhecida em uma compreensão espacial ampla, o que restringe muitas pessoas com limitação visual a rotas já conhecidas. De acordo com os autores, ainda, para essas pessoas o tempo domina o espaço sobre uma compreensão espacial, por exemplo como quando andam de autocarro.
Muitas pesquisas têm enfatizado a necessidade de se introduzir o ensino de mapas tácteis às crianças cegas o mais cedo possível e demonstrado que o uso desses mapas pode ser um meio útil de fornecer às pessoas com limitação visual informações espaciais complexas, as quais não lhes estão prontamente disponíveis através da experiência directa ao percorrer um caminho (Ungar, Blades e Spencer, 1993; 1995; 1996a, 1996b). Isso porque cegos e portadores de limitação parcial da visão teriam dificuldade em construir uma representação precisa e flexível de seu ambiente, tão somente a partir de uma experiência directa de mobilidade por esse ambiente (Rosa e Ochaíta, 1993; Spencer, Blades e Morsley, 1989).
Consoante Ungar et alii (1994) o conhecimento do caminho de determinado lugar impõe limitações no nível de mobilidade a que uma pessoa pode alcançar, i. e., passagens alternativas ou atalhos não são deduzidos desse conhecimento. Isso pode ser problemático, quando uma pessoa com limitação visual muda-se para uma nova região ou precisa frequentar um grande logradouro público desconhecido.
Todavia, muito pouco se tem estudado sobre como mapas tácteis são utilizados por pessoas com limitação visual. Menos ainda se tem considerado o modo pelo qual os cegos formam representações mentais do espaço, a partir de experiência direta e de mapas tácteis, a despeito de os psicólogos, há muito, se interessarem em saber de que maneira as pessoas manipulam e formam representações mentais do ambiente espacial (Ungar et alii, 1996). No Brasil, como temos afirmado reiteradamente, os estudos relativos ao tacto e suas implicações são incipientes e ainda muito tímidos.
Excepção à quase inexistência desses estudos é o trabalho de Oka (1999), o qual visa defender "o uso de mapas tácteis como recurso gráfico enquanto recurso didático e para o uso quotidiano (principalmente na mobilidade)". A autora intitula seu trabalho indagando se mapas tácteis são necessários. A resposta (que na opinião da autora deve ser afirmativa) "pode parecer óbvia, no entanto, poucas pessoas utilizam o mapa táctil." Isso se daria por conta de uma "escassez de material, de pesquisas na área (aqui no Brasil), de incentivo para a produção e de pessoal especializado".
Segundo a autora, ainda, "muitas pessoas vêem o deficiente visual como incapaz de ler mapas, esquemas e outros materiais gráficos". Com tal visão, essas pessoas acreditam que a utilização desses recursos seria dispensável para os indivíduos cegos, dada a dificuldade que estes teriam em compreender o "emaranhado de linhas, pontos, nomes etc".
Visões como esta, citada pela autora, constituem exemplos de vieses socioculturais e científicos enraizados no conhecimento e postura de educadores, pesquisadores e dos próprios portadores de limitação visual, e que precisam ser extirpadas em benefício desses mesmos sujeitos (Lima, neste volume).
Como vemos, pois, de um lado são muitos os benefícios que se pode obter através do uso do desenho, de outro se faz urgente dedicarmo-nos séria e profundamente ao estudo do tacto nas suas formas háptica, sinestésica e proprioceptiva, buscando desenvolver e aprimorar equipamentos e técnicas que beneficiem as pessoas com limitação visual, tanto na sua educação e lazer, quanto na sua orientação e mobilidade. Desenhos, mapas e diagramas em relevo, produzidos especialmente para uma leitura táctil, podem constituir meios de superação de algumas dificuldades vivenciadas por essas pessoas.
A união de pesquisadores, educadores, psicólogos e dos sujeitos com limitação visual pode alcançar esse feito, pois como disse Morsley, Spencer e Baybutt (1991), melhorar a qualidade de vida de crianças cegas pode, muitas vezes, ser alcançado por mudanças relativamente directas, sem a necessidade de depender de alta tecnologia, nem de grande despendimento de tempo por professores ou pais. Cremos que para que isso ocorra, é necessário, tão somente, que se tenha boa vontade, diligência e apoio, inclusive financeiro, de órgãos oficiais e, mesmo, não-governamentais.
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