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Centelha de vida

por Lerparaver

Uma máquina de escrever e algumas folhas brancas. E serão mesmo brancas? E duvidar para quê? A dúvida é a mãe de todas as incertezas e inseguranças e a verdade fica eternamente à espera de uma oportunidade. As coisas são aquilo que os nossos sentidos permitem que sejam. A cor, o cheiro, o tamanho, a beleza não estão nos objectos mas, em nós mesmos.

E tu, meu amor, o que és tu para mim? O que é para mim a mulher que eu amo? O meu prolongamento, o prolongamento do meu próprio ser. És a força que veio dar força à minha vida.

Se o nosso amor for tornado público será condenado, criticado e mal tratado, e muita gente tentará destruí-lo. Mas, não há necessidade disso. Podemos nos amar em silêncio, fazer do nosso amor um amor só para nós dois. Seremos felizes à nossa maneira, longe de uma sociedade materialista e egoísta. Por certo, a nossa própria família considerar-nos-ia inconscientes e irresponsáveis. Ninguém terá o bom-senso de nos dizer que para além dos espinhos também é possível termos um jardim de rosas à nossa espera.

Se já não bastasse eu viver nas trevas, agora temos que nos amar distantes do mundo.

Que culpa temos nós de sermos deficientes? Que culpa temos nós que as outras pessoas desconheçam que dentro do nosso peito existe um coração que palpita, que bate dia-a-dia? É imenso o nosso coração, e ninguém acredita, ninguém sonha que assim seja. Só tenho medo é que um dia te canses de vivermos às ocultas no tempo e no espaço.

Mas, para que estou eu a pensar nisto tudo, sozinho, em frente a esta máquina e a estas folhas em branco?

Ai, que saudades do meu primeiro amor.

Foi há dezasseis anos e é uma das poucas recordações boas que trouxe comigo do tempo em que vivi em Lisboa.

O meu primeiro amor teve nome; chamou-se Raquel. Era inocente e pura como as mais puras águas cristalinas das nascentes que já esqueci. Éramos crianças felizes sem sabermos porquê.

Certa manhã ofereci-lhe uma rosa e em troca ganhei um beijo. E foi assim muitos dias. Sacrifiquei muitas flores para conquistar uma carícia dos seus meigos lábios.

Raquel movia-se com o auxílio dum andarilho. Era linda demais, Um olhar muito vivo, duas faces rosadas. O cabelo descansava-lhe sobre os ombros e as suas palavras eram tão imperceptíveis que quase só eu aprendi a compreendê-las.

E vieram as férias da Páscoa e as saudades por Raquel. E as rosas aproveitaram para respirar de alívio.

***

É sempre com muito agrado que regressava ao Porto depois de cada período de aulas na capital. Na cidade Invicta tinha a minha família e toda a gente que me queria bem. Era o segundo ano que estava em Lisboa sempre na ânsia de retornar à terra que me viu nascer e crescer. Ainda tão criança e já com uma existência tão repleta de amarguras.

Nos princípios da década de 70 era horrível ser-se deficiente em Portugal. Todos nos olhavam como se sofrêssemos de lepra. Essa época vai já distante mas da qual nunca me esquecerei, apesar de ainda hoje ser esse um dos maiores desejos. A minha estadia no sul fez-me tornar num homem à força. Num fim da minha curta infância não me deixaram saborear um momento sequer da adolescência a que tinha direito. Viver longe dos entes que nos são queridos, à mercê dos mais diversos perigos e tentações, empurrado por estes e por aqueles, num mundo alicerçado no materialismo desmedido e na concorrência desleal, foi duro de mais para um menino de dez anos.

Em Lisboa, ensinaram-me que se trabalha para ganhar dinheiro, come-se para não morrer à fome, a voz que Deus nos deu não serve para outra coisa que não seja exigir, reclamar, protestar, raramente para agradecer: E eu que imaginava o mundo tão diferente. Pensava à minha maneira que a inteligência dos homens era para fazer o bem, pensava que os olhos, as mãos, a boca, todos os nossos sentidos eram para amar; e toda a minha inocência ficou perdida em Lisboa, afogada nas águas sujas do Tejo, atirada para cima dos arranha-céus e arrastada para os muitos becos sem saída.

Se não tivesse sido Raquel o primeiro amor da minha vida, inocente e pura, nunca mais teria amado com inocência e pureza.

É verdade que te amo, porém, é diferente. É um amor consciente. O nosso amor é consciente, sabias? Sei que te amo e tu sabes que me amas, mas isso que me importa. É tão consciente, tão consciente que não lhe posso dar nome nem tu lhe podes dar nome. Há 17 anos que o meu primeiro amor se chama Raquel e o nosso, como se há-de chamar? Não, não digas nada, fica calada, quieta, olha para mim; olha para mim muitas vezes, por ti e por mim, porque para ti não posso olhar. Estes olhos que viram Raquel já não têm luz para te verem. O brilho que lhes sentes é fruto do amor que tenho por ti. Se Raquel me visse agora ia chorar; ela gostava muito dos meus olhos, mas ela também não me vai ver mais. Não sei que rumo levaram seus passos. Se calhar, é casada e feliz, ama e tem filhos.

Depois daquelas férias da Páscoa voltei às aulas, e as rosas tornaram a chorar de dor. Até que veio o mês de Julho.

Era uma tarde muito quente e bela. Neste dia, em vez de uma rosa tinha um espinho para oferecer a Raquel e Raquel, em vez dum beijo, tinha uma lágrima para me dar como última recordação sua. Aqueles eram efectivamente os derradeiros momentos em que iríamos estar juntos. E ainda hoje me recordo das derradeiras palavras que trocámos.

- Gostei muito de ter-te conhecido, Raquel. És uma miúda bestial. Vá lá, não chores!

- Tu tamém fôte muito bom paa mim, Améico. Agoa é tade e a caguinha já deve estal à nota epea. - disse ela apressando as despedidas.

- Dá-me um beijo, Raquel. Dá-me o teu último beijo.

- Não, Améico, não.

Não contendo os soluços, virou-me as costas, deixando-me para trás. Fiquei, por breves instantes, vendo-a distanciar-se, lentamente, de mim, desaparecendo finalmente numa curva ao fundo daquele corredor ladeado por paredes cor de paz. Num ímpeto de coragem e de raiva, também eu parti, pondo ponto final em mais um capítulo da minha vida, recheada de cenas de dor e de amor.

* *

O amor e a dor quase sempre caminham lado a lado nas encruzilhadas da vida. Mas se alterarmos a posição dos termos verificamos que quase nunca a dor e o amor coexistem no calvário da nossa existência.

Cristo morreu por amar o mundo, porém, na sua suprema agonia, o mundo virou-lhe as costas e só a sua dulcíssima Mãe chorou a sua morte. Quadro majestral, perpetuado pela inteligência de milhares de artistas e contemplado por milhões e milhões de olhares, uns piedosos, outros incrédulos, outros simplesmente insensíveis e, poucos, muito poucos, verdadeiramente devotos. Como católico praticante que sou, preocupa-me pensar naquele transcendente rosto caído sobre o corpo nu de braços bem abertos, como se naquele suplício quisesse abraçar o mundo inteiro.

Durante a minha infância e parte da minha juventude nunca acreditei em Deus e muito menos na existência de seu Filho. Todos os sacramentos que fui buscar à Igreja não passavam dum mero ritual para não desgostar a minha família. Igreja, Papa, Bispos, padres, santos, anjos, arcanjos, não significavam nada para mim. Até que em Abril de 1980... Era domingo de Páscoa e beijava a Cruz - mais um ritual, um simples ritual sem qualquer significado - e nesse dia, os meus passos descobriram um novo caminho. Um caminho que principiou por ser muito escuro, sem luz, sem saída. Autêntico mistério aquele. Sempre ouvira dizer que Cristo viera ao mundo para salvar, para o tirar das trevas; e eu, depois de o ter beijado nesse mesmo dia de glória, fiquei cego. Que grande paradoxo este! Seguiram-se duas intervenções cirúrgicas sem grande sucesso e em Julho de 1988 viria a terceira totalmente fracassada. Sem a luz do corpo, restava-ma a luz do espírito. Nesses 8 longos anos de luta constante, comigo próprio e contra as trevas, só Deus estivera do meu lado. Muitas vezes, senti as forças abandonarem-me, e quando parecia já estar tudo perdido, era banhado por um novo vigor vindo não sabia bem donde. Frequentemente dei comigo a balbuciar: "Deus seja louvado"!

* *

Oh, meu amor! São sedosos os teus cabelos, a pele macia, as mãos carinhosas. E os teus olhos? Como são os teus olhos? Quem me dera poder vê-los! Dizem que parecem duas avelãs. Mas, a mim não me importa do que eles parecem, interessa-me saber o que eles transmitem. Os olhos são os mais fiéis mensageiros. Quantas vezes um simples olhar desmente, sem apelo nem agrado, aquilo que os mais carmins dos lábios pronunciam. E os meus lábios só se movem para murmurar: "Amo-te. Quero-te... para toda a vida!"

É um sufoco ter de esconder dos outros esta minha alegria. Porque não havemos nós de sermos livres de amar? Malditos preconceitos que persistem em impedir de alcançarmos a felicidade; viver a vida a que temos direito?

Dizem por aí à boca cheia que quem ama é feliz, e nós, porque não podemos nós ser felizes, se nos amamos tanto?

Oh, homens e mulheres do meu país, livrai-vos da ignorância e caminhai rumo a uma sociedade mais justa e fraterna, onde haja o direito à diferença e onde cada cidadão, sem descriminação de qualquer espécie, possa contribuir para a reconstrução dum mundo mais perfeito.

Esta noite tive um lindo sonho. Tu surgias com um vistoso vestido de noiva. Em redor ouviam-se cânticos festivos. Um burburinho de vozes excitadas esbarrava-se nas paredes. Pairava no ar um odor sufocante a cera queimada. Por fim, numa voz desgastada pelo tempo, o padre pronunciou as derradeiras palavras. Estávamos casados " Em nome do pai, do filho e do espírito Santo."

Américo Lisboa Azevedo

Comentários

Olá, eu sou a Ana e fuei deliciada ao ler o que escreves-te.
Eu tenho a referir que a vida traz coisas e boas e más ao mesmo tempo, mas ninguem nos impede de viver como nós somos e queremos.
A nosa sociedade só se interessa por meios materiais e desliga-se de tudo o resto. É triste mas é mesmo assim.
Luta sempre pelo que queres, pois um dia terás o que pretendes.
Ana Santos