Preenchem-se os papéis da candidatura a um cão-guia e fica-se a aguardar a tão esperada entrevista, que tanto demora a acontecer. E, quando finalmente somos chamados, lá vamos como que para um exame da escola ou para uma entrevista de emprego, em que, na nossa convicção, a postura deve ser sempre a de mostrar que sim, que somos absolutamente aptos a ter um cão-guia, que o queremos de verdade, que nos faz imensa falta.
Tão empenhados estamos nesta missão que quase nada ouvimos e talvez muito pouco dizemos do que realmente interessa para que possam escolher o cão que melhor funcione connosco. Nem sequer nos ocorre que os profissionais que nos chamam para a entrevista já avaliaram com cuidado as nossas respostas ao formulário de candidatura e, caso algo não estivesse correcto ou levasse a considerar a nossa impossibilidade de ter um cão-guia, não nos teriam feito esperar tanto tempo para clarificar tal informação. Muito menos nos ocorre que esses mesmos profissionais receberam já outros candidatos antes de nós, que sabem muito sobre a deficiência visual e sobre as suas implicações e que não estão ali para nos avaliar simplesmente como bons ou maus candidatos, mas como pessoas com características que facilitarão ou dificultarão o convívio e a utilização de um determinado cão que esteja candidato a ser nosso guia.
Quando lá chegamos, todos se mostram descontraídos e prestáveis, mas nós, quais candidatos ao emprego de utilizador de cão-guia, já vamos antecipando que aquilo é só para não ficarmos nervosos porque, na verdade, vão examinar-nos com minúcia e temos de nos safar bem.
Entramos para a sala e, que surpresa, temos quatro ou cinco pessoas para nos entrevistar. Enfim, parece que nos vão desnudar e que vamos ficar expostos a todos esses pares de olhos atentos. Sentimo-nos claramente em desvantagem porque pensamos que estão a observar as mínimas expressões, os mais discretos gestos, sem que consigamos acompanhar tais observações. E nomeio destas desconfiadas conjecturas, tanto nos protegemos que acabamos também por nos proteger de informação que, mais tarde, muito valiosa nos seria. E mais: nesta protecção, não damos aqueles profissionais a nossa informação pessoal que os auxiliaria a fazerem uma boa atribuição.
Alguém começa por nos alertar que ter um cão não é o mesmo que ter uma bengala. Que o cão é um ser vivo, temos de lhe dar afecto, assumir cuidados diários, blá, blá, blá, blá... Para começar, então, sentimos aquela necessidade de dizer que sim senhora, claro que queremos assumir, claro que já sabemos essas responsabilidades todas, mas queremos o cão, não tenham dúvidas!
Depois, vem o alerta para o difícil que são os primeiros tempos com o nosso cão, ele irá testar-nos, pregar-nos partidas, não terá logo o melhor desempenho para o que está preparado, blá, blá, blá... Mas, estarão a convencer-nos que devíamos repensar? Existe alguma coisa de errado com a nossa candidatura? Não há nenhum cão que se nos adeqúe?
E então vêm as perguntas, finalmente começa a prova a valer. E nós, muito contidos, questionamo-nos se dizendo algo de determinada forma, eles irão retardar a nossa entrega. Perguntam-nos como somos no dia-a-dia. Mas é claro que não podemos confessar que temos receios, que ficamos zangados quando batemos num obstáculo, que não temos paciência para as perguntas intrusivas e para os comentários piedosos dos outros. Muito menos confessar como somos nos dias não, naqueles em que questionamos a vida, a deficiência. Importa-nos reiterar as nossas competências, ressaltar o nosso esforço para que tudo corra bem, garantindo assim o emprego de utilizador.
Saímos, enfim, com a sensação de dever cumprido e a dúvida se teremos representado bem a nossa função de candidatos empenhados e inquestionavelmente aptos.
Para trás ficaram as pessoas que trabalham na escola e que apenas gostariam de nos conhecer melhor e saber como é o nosso dia-a-dia para poder atribuir-nos um cão que se adeqúe às nossas necessidades e que se entenda connosco.
Atrás fica o que não ouvimos e tanto jeito nos daria nos primeiros dias com o nosso cão, quando pensamos se vale mesmo a pena investir num ser que nos desorienta e nos faz tropeçar. Se tivéssemos ouvido, recordaríamos que essa é apenas uma fase que vai passar com alguma perseverança. Se não estivéssemos tão obcecados em mostrar-nos os melhores candidatos da lista, saberíamos já que depois de alguns meses de convivência atingem-se melhores resultados e que o início é difícil para qualquer um.
Finalmente, já depois da entrega, se não estivéssemos tão preocupados em ser os melhores utilizadores e em concluir que o nosso cão é o melhor dos guias, verificaríamos que cada utilizador tem as suas próprias dificuldades para enfrentar, que, como nós, os cães não são perfeitos, mas que dão o melhor que têm para dar, fazendo com que cada dupla, utilizador e cão-guia, seja única e especial.
Sandra Estêvão Rodrigues
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