Jorge Pina
"Costumo dizer que agora é que vejo... antes era um cego"
ANA PROENÇA
Instalaram-lhe um "software" no telemóvel que lhe lê, com voz feminina, as mensagens escritas que recebe e os números que o contactam. Em casa, também tem um computador que fala, com uma lente que faz aparecer letras gigantes no ecrã. "É assim que vou lendo, demora é mais tempo", explica Jorge Pina, que tagarela a cem à hora, como se o tempo fosse curto para tudo o que tem para dizer. O maratonista paralímpico cegou aos 30 anos, mas isso só o tornou mais alegre, apaixonado pela vida e espiritual, como o próprio se define. Do olho esquerdo, não vê absolutamente nada; com o direito, vê vultos e algumas cores. Com dez por cento de visão, dá aulas de RPM, boxe e corrida no Holmes Place. Criou uma associação que ajuda crianças desfavorecidas.
Quando se apresenta aos novos alunos de RPM, diz que é cego? Ou quase cego?
Não digo nada [risos]. Mas, às vezes, eles notam pelos meus movimentos; tenho de ir apagar a luz ou carregar nos botões da aparelhagem e vou às apalpadelas. Há alunos que me ajudam. Quando estou mais inspirado, eu próprio lhes falo da minha experiência, para sentirem que se eu consegui, eles também conseguem superar as dificuldades que possam ter.
Como ficou sem ver?
Estava a treinar em Espanha, a preparar-me para disputar um título mundial, quando, de repente, começo a sentir umas borbulhas no olho esquerdo. Fui ao médico, e ele não me alertou para a gravidade do problema; só disse para regressar a Portugal e parar.
Mas via?
Mais ou menos. Era como se estivesse a olhar através de um copo de vidro com água gaseificada, embaciado. Houve um descolamento da retina, mas continuei a treinar, inclusive fiz mais dois combates, o último na Polónia. Quando cheguei, não conseguia sentir a luz no olho e fui operado de urgência. O problema foi que a retina ficou com um vinco. Tentaram remendar, mas acabei por cegar completamente do olho esquerdo.
E o olho direito?
Via bem, mas um dia vou ao Hospital de Santa Maria para uma consulta de rotina e dizem-me que também tenho de ser operado ao direito. A primeira cirurgia não correu bem, perdi um bocado a visão, mas ainda via. Fizeram-me mais três operações, sempre com a esperança de melhorar, e fiquei assim...
Como foram os primeiros dias?
Não queria sair do hospital; dizia que só saía quando começasse a ver como via quando entrei lá. Fiquei revoltado. Lembro-me de que antes de ir para o bloco operatório estava a escrever - ainda conseguia escrever - e a falar com Deus, a dizer-Lhe que sabia que Ele me iria proteger; até levei um terço para a operação.
Isso não o fez perder a fé?
As pessoas podem perguntar: "Se Deus existe, porque ficaste assim?" Mas eu não fiquei zangado; Deus está sempre comigo. Saí do hospital e atravessei a estrada para o Estádio Universitário, para começar a correr. Foi literalmente assim. Estava numa consulta de rotina, um amigo telefonou-me a perguntar se estava interessado no atletismo. Perguntei ao médico, ele disse-me que podia, e fui. Foi uma motivação para continuar a lutar.
Acha que houve negligência médica?
Até podia dizer que sim, porque entrei no hospital a ver e saí assim. Mas sinceramente não sei. Não sou cego totalmente, mas já não consigo ler nem escrever - e gostava tanto. E preciso de ajuda, seja para passar o recibo de vencimento, seja para apanhar um autocarro.
De onde lhe vem toda essa força interior?
Não sei. Acho que nasci para ajudar os outros e tive de passar por este caminho para conseguir esta transformação. A minha vida nem sempre foi um mar de rosas. E apesar de o boxe ser a minha paixão, sou uma florzinha: choro e emociono-me facilmente. Há uma parte no livro "O Principezinho" que diz que só se vê bem com o coração; o essencial é invisível aos olhos.
A lesão foi consequência do boxe?
Isto pode acontecer a qualquer pessoa, mas claro que levar pancadas na cabeça não deve ser lá muito saudável.
Do que tem mais saudades de quando via?
De me poder deslocar sem precisar de ninguém. À noite não vejo mesmo nada e ando com a bengala. A luz encandeia-me, e a escuridão cega-me. Mas agora só tenho medo quando passo a primeira vez num local. Estou farto de dar caneladas nos postes ou nas bolas de pedra que colocam nos passeios. Pisar bosta também é comum... [risos]
Isso é desagradável
Levo o cocó para casa, mas rio-me sempre. Com o tempo, adaptamo-nos e vamos arranjando estratégias: contar degraus, teclas e botões, seguir corrimãos...
Tem namorada?
Sim. Conheci-a no Estádio Universitário depois de cegar. É médica e um anjo que encontrei. Convidei-a para a minha festa de aniversário, agarrei-a, dei-lhe um beijo, e ela rendeu-se [risos]; agora é minha treinadora.
Dividem as tarefas em casa?
Por igual: eu cozinho, lavo a louça, aspiro a casa, faço tudo, e ela ajuda-me.
Explorar um corpo feminino sem vê-lo bem é certamente diferente...
Tem vantagens: agora uso mais as minhas mãos e consigo sentir coisas mínimas. E faço massagens. Descobri coisas novas em tudo.
Portanto, não foi só perder - também ganhou coisas.
Ganhei mais do que perdi. Sinto-me feliz, sou mais apaixonado pelo mundo e pelo ser humano. Dou mais valor a coisas que antes nem via. Costumo dizer que agora é que vejo; antes era um cego.
O que lhe dá agora mais prazer?
[gargalhada] Sou uma pessoa de desafios, e as coisas difíceis são aquelas de que gosto mais.
Acha que existe algum tipo de vitimização por parte dos atletas paralímpicos?
Eu não me vitimizo. Não queremos ser vistos como coitadinhos, mas trabalhamos arduamente para chegar onde estamos. Cortem uma perna, andem ao pé-coxinho ou tentem fazer o que nós fazemos de olhos vendados. E sintam a dificuldade.
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Comentários
hajam pessoas bem dispostas :-)
Hajam pessoas bem dispostas :-)
Costuma-se dizer q DEUS fecha 1 porta e abre 1 janela ... !
É mesmo assim, as coisas mudam, mta coisa muda ... mas temos q continuar a ter fé e esperança, adaptarmos às novas circunstâncias da vida, ser persistente e lutar sem cessar ... !
Pessoas assim, são de certeza pessoas vencedoras / victoriosas :-)
Abraços