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CP e a tarifa 2 em 1

por Tadeu
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Mais uma vez, volvidos dois anos da história que aqui lhes conto, tive de teimar com o chefe de estação por querer comprar um bilhete 2 em 1 tendo um cego como acompanhante.
Gostaria de um esclarecimento definitivo: Existe alguma cláusula na legislação da tarifa que impeça levar um acompanhante cego?
Peço aos juristas um esclarecimento a esse respeito.
Obrigado.

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Boa noite Tadeu,
Não sei se isto ajuda!
Acordo Tarifário (CP)
Toda a pessoa com deficiência com uma incapacidade igual ou superior a 80% pode fazer-se acompanhar por outrem em viagens para qualquer percurso...

ACORDO TARIFÁRIO "DOIS POR UM" NAS VIAGENS DE MÉDIO E LONGO CURSO

1. Toda a pessoa com deficiência com uma incapacidade igual ou superior a 80% pode fazer-se acompanhar por outrem em viagens para qualquer percurso, excepto suburbano, nos Caminhos de Ferro Portugueses (CP), tendo o acompanhante direito a ser-lhe emitido um bilhete a título gratuito, válido para o mesmo comboio e percurso, em 2ª classe.
2. A pessoa com deficiência pode beneficiar da Tarifa 2 em 1, mediante a apresentação à CP do Bilhete de Identidade e da Certidão de incapacidade multiuso, conforme consta do anexo I do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 174/97, de 9 de Julho, ou do cartão de deficiente das Forças Armadas.
3. Para obtenção do bilhete gratuito, quer nas bilheteiras da CP , quer em trânsito, sempre que for o caso, é obrigatória a apresentação do Atestado de incapacidade multiuso.

Isto ajuda muito, mas não é tudo.
Primeiro gostaria que me desse a referência deste documento que sitou no seu comentário. Isto porque, numa próxima oportunidade, quero apresentá-lo a quem estiver na bilheteira.
Quando pretendi comprar o Bilhete, o chefe da estação informou-me que o acompanhante não poderia ter deficiência e que, beneficiando eu de acompanhante, não poderia ter qualquer tipo de ajuda de outra pessoa durante a viagem. Algum documento que faça expressamente essas afirmações? Se sim qual?
Outra questão? o que significa passageiros em trânsito: significa que, mesmo com acompanhante eu posso comprar o bilhete dentro do comboio?
De salientar que o chefe de estação vendeu-me o bilhete. Mas não por achar que eu tivesse razão, mas para não se "chatear", palavras dele. Acho que percebeu que, sendo domingo de manhã, eu não tinha pressa e poderia passar ali o dia inteiro se preciso fosse até ele me vender o bilhete 2 em 1.

Cumps
Tadeu

Olá, Tadeu.

É um assunto muito interessante, e infelizmente tem feito parte da vida de muitos cegos e amblíopes.
Em primeiro lugar convém contextualizar.
No site da cp, podemos ver que a tarifa 2 por um, resulta de um acordo celebrado entre a CP – Comboios de Portugal e o SNRIPD – Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, com o objectivo de minimizar as dificuldades de mobilidade dos indivíduos com autonomia condicionada. Este acordo veio permitir que os acompanhantes das pessoas com incapacidade igual ou superior a 80% viajem de forma gratuita no mesmo comboio, no mesmo percurso e na mesma classe.
O acordo tarifário estabelecido é válido em 2.ª classe para os serviços Alfa Pendular, Intercidades, Regional, Inter-Regional e urbanos de Lisboa e Porto.
Para beneficiar deste acordo, os Clientes com Necessidades Especiais têm que apresentar o “Atestado de Incapacidade Multiuso”.
Isto é a informação oficial.
Este acordo já é bastante antigo, tanto que o snripd já deixou de existir à alguns anos, sendo substituído pelo actual INR, (instituto nacional para a reabilitação).
Mas voltando à matéria de facto, a pergunta impõem-se. A onde está o problema?
A questão é que muitos clientes com necessidades especiais, faziam-se acompanhar por pessoas com a mesma deficiência, e solicitavam à cp ajuda para embarcar e desembarcar.
E isso é que no meu ponto de vista está completamente errado, e veio prejudicar a maior parte dos utilizadores deste serviço.
Se a Cp concede o benefício ao acompanhante, não é para que depois os funcionários da empresa tenham de ajudar à mesma os deficientes. É uma questão do mais elementar bom senso.
Vai Daí, os responsáveis da Cp elaboraram uma norma interna, que segundo eles, diz que um deficiente não pode ser acompanhado por uma pessoa com a mesma deficiência.
Esta questão implica vários aspectos que merecem ser reflectidos.
Em primeiro lugar a norma interna para mim não tem qualquer validade para o público, tanto que nós clientes nem sequer a conhecemos, porque a mesma destina-se apenas aos funcionários da Cp. Por isso em bom rigor essa norma nunca me foi mostrada, e a mim não me diz absolutamente nada.
Em segundo lugar, no acordo que foi feito entre a Cp e o extinto snripd, essa questão do acompanhante não poder ter a mesma deficiência, não foi salvaguardada.
Também não vislumbro a onde está o problema de um cego acompanhar outro cego.
Como todos sabemos, existem pessoas cegas que não andam sozinhas na rua, outros que se movimentam bastante bem, e se uma pessoa cega levar um amigo também cego a sua casa por exemplo, penso que o anfitrião pode perfeitamente servir de acompanhante. No fundo, ele conhece o caminho, faz aquele trajecto todos os dias, está familiarizado com o percurso, e em princípio a pessoa a quem ele acompanha não terá qualquer problema.
Até porque à uma questão importante, e que em minha opinião faz toda a diferença.
Esse argumento que os revisores da Cp por vezes usam, e que defende que um deficiente visual não pode acompanhar outro no comboio, porque também ele tem mobilidade reduzida, mesmo que se consiga provar a deficiência do acompanhante, devo dizer que as coisas não são bem assim.
quando uma pessoa decide viajar, devemos de ter em conta tudo o que motiva a viagem e não apenas o simples facto de andar de Comboio.
Por exemplo:
Se eu vou viajar e não tenho mais nenhum acompanhante a não ser uma pessoa cega, terei de ficar em casa? Mas se a pessoa vai só para ir comigo, porque até conhece o local para onde eu quero ir, e pode-me orientar sem problema. Já não me pode acompanhar?
Poderá dizer o revisor. Mas a pessoa também é cega. Eu responderia. Tudo bem, mas ela conhece o sítio para onde vamos, e eu não conheço. Logo tecnicamente ela tem todas as condições para me acompanhar.
Depois, temos ainda outra questão fundamental, e que para mim é indiscutível.
Se uma pessoa cega aceita ser guiada por outro cego, é uma decisão que só diz respeito aos dois. Eles melhor que ninguém sabem as linhas com que se cozem. A partir do momento que os dois são autónomos, e dispensam a ajuda dos funcionários da Cp, ninguém tem de colocar entraves a onde eles não existem.
Existe ainda outra questão curiosa.
Para que uma pessoa usufrua da tarifa 2 por 1, tem de exibir o seu bilhete de identidade, e o documento comprovativo da sua deficiência.
Se não mostrar esse documento, o revisor da Cp não tem como provar que a pessoa é portadora de deficiência.
Mas quando eles rotulam os acompanhantes de deficientes? Aí não têm nenhum documento! Para uns casos só com certidão multiusos é que atesta a incapacidade, mas para os acompanhantes basta um simples olhar? É uma incongruência grave.
Assim como também é uma falha gravíssima o funcionário da bilheteira não querer vender o bilhete.
Em primeiro lugar, ele não tem nada que perguntar quem é que vai acompanhar a pessoa com deficiência. Isso não é um assunto que lhe diga respeito.
Em segundo lugar. O cego é que sabe quando é que vai ser acompanhado e em que contexto precisa de ajuda. Um exemplo, se eu morar perto da estação de comboio, conheço bem o caminho para lá, mas se for para um destino que não conheça, aí sim vou precisar de arranjar um amigo que me ajude. Neste caso a essa ajuda é necessária depois da viagem de comboio, porque até à bilheteira da estação eu posso deslocar-me sozinho, comprar o bilhete, e esperar na gar pelo meu acompanhante. E eu não tenho de prestar esclarecimentos sobre a minha vida.
Parece-me claramente que os cegos aqui estão a ser francamente discriminados, porque não está a ser tida em conta a especificidade da sua deficiência. Porque, actualmente ao invés de encararmos como positivas e necessárias as medidas para tirar os cegos de casa, porque antigamente havia a ideia generalizada que os deficientes visuais eram dependentes e que rega geral não se deslocavam sós, hoje tenho a certeza que à razões mais que suficientes para que mudemos a direcção das políticas para os cegos, e aqui creio que é mais justo e vantajoso promover a autonomia do que insistir nessa teoria do assistencialismo, como se os cegos apenas conseguissem deslocar-se com ajuda de terceiros.
O que sucede é que nós, para sermos autónomos estamos sujeitos a despesas adicionais que os normovisuais não estão tão expostos a contraí-las. Por exemplo: uma pessoa sem mobilidade reduzida chega ao fim de uma viagem de comboio, e vai a pé ou procura um transporte público. Um cego quase que invariavelmente tem de tomar um táxi para se deslocar até ao seu destino.
Não estou a dizer, que só os cegos andam de Táxi, o que quero tentar transmitir é que para um normovisual essa é a terceira ou quarta alternativa, e para um cego 'a primeira.
Sendo a Cp uma empresa pública, faz todo o sentido que a empresa crie medidas para diminuir as diferenças entre os cegos e amblíopes, e o resto dos concidadãos.
Não faz sentido que dêem aos deficientes incentivos para a compra de casa, no fundo para nos tornarmo-nos autónomos, e depois que se criem regulamentos, ou normas internas, que defendam que nós apenas podemos andar acompanhados, sozinhos, já mais!
Em suma, penso que a base que sustentou a tarifa dois por um, deve ser reajustada ao contexto e às necessidades dos deficientes visuais, e naturalmente caso outras deficiências requeiram medidas diferentes das que eu preconizo, elas também devem ser contempladas. De uma vez por todas, à que arrumar para o lado aquela ideia que os deficientes são todos iguais.
Cada deficiência têm as suas necessidades.
Assim, à que dizer que o objectivo inicial desta medida, que recordo é minimizar as dificuldades das pessoas com mobilidade condicionada, não está a ser cumprido, porque precisamente pelo facto de termos limitações ao nível da mobilidade, precisamos de medidas que discriminem positivamente, para que possamos ser mais iguais aos nossos semelhantes com mobilidade normal.
Finalmente deixo um exemplo prático, e que para mim é extremamente eloquente do quanto esta medida da Cp é discriminatória.
Se um grupo de 4 pessoas precisar de ir do Porto para Lisboa, e se optar pela solução mais económica e mais cómoda, obviamente irá de automóvel.
Mas, se forem 4 cegos que pretendam fazer a mesma viagem, terão de ir de comboio, e aí o preço a pagar ultrapassa os 200 euros ida e volta, bem entendido. Quem for de automóvel não paga tanto, chega ao destino mais rápido, e não se sujeita aos horários dos comboios, ou seja, se todos tivermos duas alternativas, provavelmente iremos optar pelo transporte particular, enquanto os cegos apenas têm uma solução possível, que é o transporte público.

Um abraço para todos.
Filipe.

+Filipe Azevedo